24/12/2010 - Revista Boa Forma
Essa tristeza é normal? Aprenda a identificar a depressão infantil
As crianças têm direito a dias de baixo astral, mas é preciso estar atento. Conheça a diferença entre a tristeza e a depressão de verdade, daquelas que precisam de remédio
Antes de entrar na farmácia para comprar o antidepressivo que um psiquiatra infantil acabara de receitar para seu filho Otávio*, de 9 anos, a publicitária Ana* resolveu botar a mão na consciência. Uma análise mais profunda de sua vida e de todos que cercavam o filho a fez concluir que a total falta de interesse do menino pela escola, comida e brincadeiras que antes o deixavam animado era apenas um sinal de um problema mais grave. Na verdade, ela e o pai de Otávio passavam por uma profunda crise conjugal justificada por ambos pelo volume de trabalho.
“Não queríamos tocar nesse assunto, achávamos que tínhamos de resolver outros problemas maiores no escritório antes de mergulhar em nossas questões, mas acabamos atingindo a parte mais frágil da família”, diz ela.
A total apatia de Otávio que culminou na receita do antidepressivo fez os dois tirarem uma semana de folga e mergulhar na crise. “Foi a pior semana da minha vida, percebi que, apesar de estar indo muito bem no trabalho, tinha fracassado nos outros departamentos do meu cotidiano”, lembra. A lavagem de roupa suja quase levou a uma separação do casal, mas, um ano mais tarde, ambos acham que valeu a pena. O mais importante é que Otávio recuperou a alegria de viver, voltou a comer, a ir à escola com prazer sem ter de tomar remédio algum. O caso de Ana é uma exceção.
A cada dia aumenta o número de pais que saem de um consultório médico – não necessariamente psiquiátrico – com uma receita de antidepressivo para resolver uma apatia súbita que consome crianças e adolescentes por alguns meses. A ingestão ou não dos remédios divide os especialistas, mas todos são unânimes em pedir um cuidado: não dêem medicações desse tipo aos filhos antes de ter certeza do diagnóstico da criança.
Tipos de depressão
“Só um profissional especializado sabe diferenciar a depressão-doença da depressão- normal reativa”, adverte o psiquiatra e analista Carlos Byington, pai de Olívia, Rita, Bianca e Elisa. Formado no Instituto
Jung, na Suíça, membro da Sociedade Internacional de Psicologia Analítica e fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, Byington vai mais longe. Para ele, há um problema de diagnóstico dedepressão tanto infantil quanto de adulto. “Desde o pós-guerra, com a liberação do prazer, a ‘invenção’ da obrigação de ser feliz, a criação da indústria do consumo, fomos induzidos a esconder nosso lado sombra, nossas tristezas. A indústria farmacêutica cada vez mais rica e poderosa, e seus investimentos milionários em marketing, inseriu no consumo de antidepressivos, a idéia da ‘pílula da felicidade’, que veio para tirar a tristeza das pessoas”, diz o psiquiatra.
Pílulas da felicidade
Segundo Byington, não por acaso o surgimento da pílula coincide com um diagnóstico detalhado do que seja depressão na principal publicação do gênero nos Estados Unidos – o DSM – IV, livro com a lista de distúrbios psiquiátricos do homem moderno. “Com a lista dos sintomas da depressão, os laboratórios podem enviar representantes de vendas pa ra os consultórios de todos os tipos de médico para apresentar os antidepressivos. Atualmente, quase todos os profissionais da área médica receitam esse tipo de medicação”, diz. Por isso mesmo, Byington pede muito cuidado. “Antes de dar esse tipo de medicação para seus filhos, sejam honestos consigo mesmos, avaliem o cotidiano deles e a vida amorosa familiar, pois os casos de depressão-doença são raros, e os de depressão-reativa muito freqüentes. O que a maioria das crianças apresenta, nesses casos, é uma reação a uma disfunção familiar, que quando diagnosticada como doença depressiva pode mascarar o verdadeiro problema e estigmatizar a criança”, diz.
Supervisora do serviço de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, Lee Fu I, filha de Chaingpichang, divide com Byington a preocupação com a receita indiscriminada de antidepressivos. “Mas acho que, ao lado
de outro tratamento, a medicação é, sim, eficaz nos casos necessários”, explica. Ela concorda que tem uma dose de subjetividade no diagnóstico médico, mas ainda assim crê que a medicação é uma aliada nos tratamentos em que se faz necessária. “Ainda não é possível dosar as proteínas do organismo de alguém antes de indicar a medicação. O que fazemos no HC é um exame do metabolismo da criança ou adolescente antes de submetê-lo a uma medicação, que é refeito durante todo o tratamento, para ter certeza de que aquela substância acrescida no organismo dele não esteja causando nenhum déficit físico”, diz.
A psiquiatra aconselha os pais a dar medicação aos filhos só depois de passar por um profissional que entenda de criança e ser convencidos por ele do quadro clínico. “Não vejo razão para ter medo dos remédios desde que o diagnóstico venha de um profissional gabaritado, e os pais tenham sanado todas as mais singelas dúvidas a respeito dele”, diz Lee.
Reincidência
Coordenador do Departamento de Criança e Adolescência da Associação Brasileira de Psiquiatria e da associação carioca, Lúcio Lima, pai de Francisco, Luis Felipe e Lívia, também acredita que o antidepressivo é um aliado em casos específicos. “Quando há atraso na vida da criança por causa de um quadro de apatia fora do comum que persiste por pelo menos dois meses e nenhuma terapia foi capaz de dissolver, o medicamento ajuda”, diz. Como todos os colegas, Lima aconselha cuidado no uso de medicação, mas ressalta que um diagnóstico precoce pode evitar a reincidência. “Num adulto a probabilidade de reincidência de uma depressão é de 50%, em crianças e adolescentes esse número é muito parecido e um conhecimento precoce dessa tendência pode ajudar muito”, diz.
A dona-de-casa Alice* concorda com Lima. Ao ver a filha Rafaela*, de 10 anos, não sair da cama nem para tomar banho por quase três meses, ela resolveu pedir ajuda. Depois de ler sobre depressão, procurou por um psiquiatra indicado em uma seção de cartas de um jornal de grande circulação em São Paulo. Depois de analisar o caso de Rafaela e esmiuçar o cotidiano de todos os que conviviam com a menina, o profissional achou que uma medicação, aliada às sessões semanais de ludoterapia, poderia tirar a criança do quadro depressivo.
Rafaela saiu da crise em três meses, mas manteve o tratamento por mais um ano, por indicação médica. “Ela virou outra pessoa”, diz Alice. “Além de tirá-la da letargia, o tratamento também ajudou minha filha a se desenvolver de uma forma geral, até as notas dela na escola melhoraram.” Atualmente, Rafaela não faz tratamento algum, mas a cada oito meses ela tem consulta com o psiquiatra. “Temos medo de que ela volte a ficar deprimida. Até superarmos essa dificuldade, vamos manter visitas constantes ao médico”, explica Alice.