O que ocorre na ante-sala da morte
Cardiologista rompe o silêncio da ciência sobre relatos feitos por pessoas "ressuscitadas"
Acostumados a lutar contra a morte, dificilmente se esperaria, de
profissionais racionais como os médicos, uma reflexão ao estilo de
Hamlet, de Shakespeare, diante do fantasma de seu pai, sobre o que pode
acontecer depois que a consciência abandona o corpo. Nos últimos tempos, porém,
quando se tornaram freqüentes os casos em que massagens cardíacas e
estimuladores elétricos restauram a consciência ou a vida de indivíduos
clinicamente mortos, a discussão tornou-se obrigatória. Nas conversas nos corredores dos hospitais, cirurgiões e anestesistas, a contragosto e quase se desculpando, relatam histórias de pacientes que se lembram do que sentiram e viram nos minutos em que pararam de respirar e o cérebro não estava mais recebendo oxigênio. Mais pragmático que seus colegas, o cardiologista holandês Pim van Lommel resolveu dar a essas conversas um tratamento científico. Lommel compilou entrevistas com pacientes que 'passaram para o lado de lá' e voltaram. A experiência foi publicada na respeitada revista médica inglesa The Lancet e causou controvérsias no mundo todo. Não por acaso cientista proveniente de um país onde a eutanásia é praticada com mais desembaraço do que em outros lugares, o holandês Lommel juntou-se a um punhado de especialistas acostumados a mexer com temas mais familiares hoje em dia aos místicos, paranormais e, infelizmente, aos aventureiros e ilusionistas, do que aos médicos. As conclusões a que chegou são consideradas no mínimo impressionantes. O cardiologista entrevistou 344 pacientes de dez hospitais da Holanda que tinham sido considerados clinicamente mortos – condição estabelecida a partir de um eletrocardiograma. Para os médicos, uma pessoa é considerada clinicamente morta quando o cérebro não recebe suprimento suficiente de sangue, como resultado de falta de circulação, oxigenação ou de ambos. Nesses casos, se não forem realizadas tentativas de ressuscitação em um prazo de cinco a dez minutos, os danos cerebrais tornam-se irreparáveis e não há como sobreviver. Dos pacientes entrevistados, 62, ou 18%, disseram ter passado por uma experiência que os estudiosos chamam de quase-morte. Os outros 282 não lembravam de coisa alguma do período em que estiveram inconscientes. Nos casos de lembrança, as pessoas relatam diversos tipos de visões. As mais comuns são sensações de se ver fora do corpo, a percepção de uma luz em um túnel escuro, o encontro com amigos e parentes queridos já mortos e a revisão da própria vida em flash-back. Os relatos não são originais. Desde que o assunto começou a ser estudado pelo americano Raymond Moody, em 1975, os estudiosos perceberam que as lembranças, embora não sejam idênticas, obedecem a um mesmo padrão. Isso ocorre, notaram os estudiosos, mesmo em diferentes culturas. Pessoas em estado terminal, com câncer ou Aids, ou que entraram em coma em conseqüência de acidentes, tentativa de suicídio etc. também relataram experiências similares.
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Memória falsa
Lommel queria estabelecer a freqüência desses casos em pacientes que tiveram ataques cardíacos e os fatores que afetavam a freqüência, conteúdo e profundidade das experiências, tais como intensidade dos ataques, tipo de medicação, sexo, idade, religião, grau de educação. Para isso, usou vários tipos de entrevista-padrão aceitas normalmente em análises científicas. Fez novamente as mesmas entrevistas dois anos depois dos ataques cardíacos, com os sobreviventes, comparando com aqueles que, embora também estivessem clinicamente mortos, não se lembravam de ter passado por essas experiências.
Dois anos depois dos ataques, 19 dos 62 pacientes haviam morrido e seis recusaram-se a ser entrevistados de novo. Lommel só pôde entrevistar 37 pacientes, mas todos contaram novamente suas experiências quase com as mesmas palavras. Curiosamente, quatro pacientes do grupo de controle, ou seja, que não tinham relatado a visão de quase-morte da primeira vez, mudaram o seu depoimento. Lommel sugere que esses pacientes poderiam ter se sentido pouco à vontade para descrever o que passaram na primeira entrevista, mas não há como descobrir se isso de fato ocorreu ou se eles simplesmente desejavam acreditar que também tivessem passado pela experiência. Estudos recentes na área de psicologia mostram que ao imaginar que viveram certas situações, muitas pessoas podem desenvolver o que se costuma chamar de memórias falsas.
Mudanças de
vida Durante 12 anos, o cardiologista-chefe do Hospital Rijnstate, Pim van Lommel, em Arnhem, na Holanda, acompanhou os 344 pacientes de seu estudo, publicado na revista médica inglesa The Lancet. Eram cardíacos que sofreram processo de reanimação em dez hospitais. Entre os 62 que disseram ter se lembrado do que ocorreu no momento em que estavam clinicamente mortos, 13 (ou 12%) morreram logo depois de serem entrevistados - um índice significativamente maior do que entre aqueles que não se lembravam de nada. A idade média dos pacientes era 62 anos, mas havia um de apenas 26 e outro de 92 anos. Lommel relata que todos os 38 pacientes remanescentes de sua pesquisa, tendo ou não se lembrado de ter passado por uma experiência de quase-morte, relataram uma grande mudança em suas vidas. Disseram se sentir melhor, ter mais auto-estima e valores religiosos. O acompanhamento de doentes terminais ganhou força no fim da 2ª Guerra Mundial com o trabalho da pesquisadora suíça Elizabeth Kubler-Ross, iniciado nos campos de concentração da Polônia. Como professora-assistente de Psiquiatria no Billings Hospital de Chicago, ela criou o termo tanatologia, que significa o estudo das necessidades dos que estão próximos da morte. Durante os seus anos de experiência, ela começou a guardar relatos de seus pacientes e notou que muitos deles falavam de experiências fora de corpo, túneis de luz e sensações de bem-estar, as mesmas lembranças relatadas pelos pacientes de van Lommel no seu estudo. |
Sem explicação
O resultado das entrevistas realizadas por Lommel com os pacientes demonstrou que não havia um padrão definido, ou seja, nenhum fator físico, como a duração do problema cardíaco, a medicação ou os danos à saúde, poderia ter influenciado aquelas visões. Além disso, as entrevistas não confirmaram uma coincidência de fatores psicológicos ou culturais, como medo da morte, experiências traumáticas, idade, sexo ou religião que poderiam ter criado um estado mental favorecedor daquela situação.
Conforme Lommel declarou a GALILEU: 'Não há uma boa explicação para a origem ou as causas das experiências de quase-morte. Se os fatores médicos, psicológicos ou neurofisiológicos, por exemplo, fossem os responsáveis por essas visões, todas as pessoas deveriam ter passado por uma experiência semelhante, o que não ocorreu'. Então, o que aconteceu?
As explicações de Lommel surpreendem e contrariam o que normalmente se aceita em ciência. Baseado nos dados observacionais, ele acredita na 'possibilidade da recepção da consciência e não da sua produção pelo cérebro.' Ou seja, o cardiologista levanta a possibilidade de a consciência não estar dentro do cérebro, portanto, não depender exclusivamente do funcionamento dos neurônios para existir. 'Como pode ocorrer uma consciência clara no momento em que o cérebro não está mais funcionando?', pergunta ele. 'O conceito até agora proposto, mas nunca comprovado, de que a consciência e a memória estariam localizadas no cérebro deveria ser revisto', afirma.
Segundo Lommel, o relato dessas visões amplia os limites do conhecimento sobre a consciência humana e sua relação com a mente-cérebro. Essa argumentação não é aceita com naturalidade por outros cientistas. O pesquisador Christopher French, da Unidade de Pesquisa em Psicologia Anômala da Universidade de Londres, afirma que a pesquisa, embora meticulosa, não consegue comprovar se as experiências ocorreram de fato durante o período em que os pacientes estavam clinicamente mortos, ou um pouco antes ou um pouco depois.
French faz uma ressalva em um comentário na mesma edição da revista The Lancet em que Lommel publicou seu artigo. Apesar da pesquisa não mostrar uma resposta convincente, segundo ele, 'estudos desse tipo devem ser considerados um avanço diante das experiências anteriores que visavam explicar o fenômeno'. Para French, 'a natureza das relações entre a mente-cérebro e a possibilidade de vida após a morte são algumas das questões mais profundas sobre o lugar do homem no Universo'.
No entanto, para Luiz Eugênio Mello, professor de neurofisiologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), as visões relatadas por Lommel têm uma explicação mais simples. 'É uma situação análoga ao que ocorre quando uma pessoa entra numa anestesia', afirma. 'Ela pode sonhar, ter alucinações e perceber o que ocorre em volta.' Da mesma forma, diz o professor, a experiência pode ocorrer em pessoas que inalam éter, clorofórmio, cola de sapateiro ou lança-perfume. Essa associação, porém, não explica por que pacientes clinicamente mortos, ou seja, sem estimulação do cérebro, têm visões desse tipo. Daí a falta de um consenso entre os especialistas.
Colega de Mello na Unifesp, Cícero Galli Coimbra, por exemplo, afirma que o fenômeno das visões de quase-morte não pode ser explicado pelos conhecimentos atuais de neurofisiologia. 'Se o resultado do eletroencefalograma for nulo, teoricamente não há neurônios se comunicando, disse Coimbra. 'O fenômeno sugere que existe alguma espécie de estrutura de natureza desconhecida da física. Talvez o cérebro tenha uma forma de projetar a consciência. Isso pode ser o que se chama de alma ou espírito.'
A pedagoga aposentada Lucy Lutf, de 66 anos, é uma das pessoas que dizem ter passado por experiências de quase-morte. Na verdade, ela relata que isso ocorreu duas vezes. A primeira, durante um acidente, em 1972, quando Lucy foi empurrada por uma onda para cima de algumas pedras à beira do mar, no Guarujá, litoral paulista. Lucy recorda-se de que, enquanto lutava contra a morte, sentiu que o corpo se desligava. 'Deslizei por um túnel, a princípio acinzentado, que depois foi clareando', afirma. 'A minha consciência deslizava por esse túnel e eu revivia toda a minha vida, com os acertos e os enganos. Quase no fim do túnel, antevi o outro lado, o que me deu uma sensação incrível de tranqüilidade e de paz.' Lucy conta que viu seu corpo sendo salvo por outras pessoas que estavam no local e mais tarde lembra-se de ter sido levada para um pronto-socorro pois havia ingerido muita água. A segunda experiência ocorreu nos anos 80. Lucy diz que resolveu fazer uma cirurgia plástica e, apesar de ter passado por todas as providências pré-operatórias, sofreu um choque anafilático e uma parada cardíaca durante a operação. 'Novamente a minha consciência deslocou-se do meu corpo físico e colocou-se acima, em observação, junto ao teto do centro cirúrgico', conta. Ela também diz lembrar-se que acompanhava tudo e sentia a preocupação dos médicos tentando fazer com que ela retornasse à consciência. Diz que ouviu o cirurgião plástico comentar que ela estava morta e por isso tentava tranqüilizá-lo. 'Depois de ser medicada e de ser feita a massagem cardíaca, retornei', diz. 'Contei ao médico o que ocorreu, mas ele não acreditou.' |
Situação incômoda
Um cientista falar tecnicamente em alma ou espírito – a nomenclatura varia conforme o credo de cada um – coloca a ciência na incômoda posição de lidar com situações anômalas e campos desconhecidos mais familiares, por exemplo, à seara da teologia. 'Essas experiências vão ao encontro da percepção das religiões de que a morte é uma travessia, uma porta, não um muro', confirma o teólogo e filósofo Leonardo Boff em entrevista a GALILEU.
Por sua vez, Luiz Eugênio Mello tem um forte argumento contrário. Sensações e visões semelhantes àquelas experimentadas pelos pacientes de Lommel também foram relatadas por pessoas seriamente doentes, mas que não estavam ameaçadas de morrer imediatamente, naquelas que sofriam de depressão ou até mesmo em experiências cotidianas. A psicóloga inglesa Susan Blackmore, também estudiosa do fenômeno, cética e autora do livro Experiências Fora do Corpo, relata que teve uma visão desse tipo enquanto mantinha uma simples conversa com amigos.
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Na opinião da psicóloga, não houve nada de sobrenatural na experiência. 'Acredito que meu cérebro usou memória e imaginação para construir a imagem convincente do mundo do ponto de vista de alguém que estava flutuando acima da cena em que meu corpo estava presente', disse em entrevista a GALILEU. Segundo suas pesquisas, 'qualquer droga que leve a um estado de desinibição, provocando um aumento de endorfina no cérebro, pode provocar uma sensação semelhante à das pessoas que passaram pela quase-morte.' Blackmore também acredita que as visões resultam do 'último impulso do cérebro', e estão programadas para ajudar a 'ultrapassar o trauma da morte'. Segundo ela, o sofrimento em casos traumáticos pode ser tão grande que a natureza estaria assim providenciando uma espécie de alucinação para amortecer o choque da morte.
Estudos sobre casos são
antigos Relatos sobre visões do que ocorre 'do lado de lá' são antigos como as pirâmides egípcias, as epopéias gregas e os registros das civilizações indianas e chinesas. Na República, de Platão (427–347 a.C), conta-se a história de um soldado morto pelo inimigo que viajou para a Terra dos Mortos, mas foi proibido de beber do Rio do Esquecimento porque tinha que retornar à vida. A maioria das religiões partilha o mito de um lugar onde as almas descansam ou padecem depois da morte. O primeiro relato moderno de visões perto da morte foi feito pelo parapsicólogo italiano Ernesto Bozzano (1862–1943) em 1908. Ele relatou que muitas pessoas, em seu leito de morte, afirmavam ver conhecidos que já haviam morrido. Em 1927, o físico inglês sir William Barrett, membro da Royal Society, publicou o livro Deathbed Visions, no qual relata que essas pessoas não só viam parentes e amigos falecidos, mas contavam histórias e sons de outros mundos. Na década de 60, o parapsicólogo americano Karlis Osis fez um estudo-piloto sobre essas visões e encontrou algumas coincidências, como o fato de a maioria dos testemunhos se referir a conversas com pessoas já mortas. Em 1975, outro parapsicólogo americano, Raymond Moody, escreveu o livro Vida Após a Vida, que traz mais de cem relatos de pessoas que tiveram morte clínica. O livro tornou-se um best-seller, vendendo mais de 10 milhões de cópias e introduziu a expressão 'near-death experience', ou experiência de quase-morte, no vocabulário.
Para Ler
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