sábado, 12 de fevereiro de 2011

Sonhos de Chico Xavier


Magali Oliveira Fernandes

De início, afirmaria que Chico Xavier pode ser considerado um dos "autores" mais conhecidos no Brasil, um dos maiores representantes da história do espiritismo brasileiro 1. Também, uma das figuras humanas mais presentes e fortes de que se teve notícia nos últimos tempos no país, tanto por suas mensagens espíritas quanto por suas obras beneficentes, sustentadas pelo repasse integral que ele sempre fez de seus direitos-autorais a editoras de livros e instituições de caridade. Nasceu em Pedro Leopoldo, Minas Gerais, em 4 de abril de 1910, falecendo na cidade de Uberaba em 30 de junho de 2002.

A questão de sua história de vida, que permea seus depoimentos e entrevistas ao grande público, vai reforçar ainda mais seu papel de personagem especial, promovendo uma série de narrativas ao seu redor, como se fosse um tipo de herói brasileiro 2.

Das obras produzidas a seu respeito depara-se com uma construção narrativa extremamente interessante que nos remete a repertórios imemoriais, como histórias lendárias, vidas de santos, heróis de contos de encantamento, etc. Chico Xavier escreveu 418 títulos desde 1932: poemas, ensaios doutrinários, romances, cartas, aforismos, literatura infanto-juvenil, aconselhamentos, interpretações bíblicas, etc. Boa parte deles com edições equivalentes a dez mil exemplares somente na primeira edição, sem contar ainda as sucessivas reedições e reimpressões.

A quantidade de venda de seus livros corresponde, atualmente, a milhões de exemplares, distribuídos em vários estados brasileiros, por diversas editoras e instituições espíritas 3, algumas delas trabalhando com exclusividade as suas obras.

Chico Xavier

Mencionaria, ainda, traduções em outros idiomas de alguns de seus livros divulgados no exterior em castelhano, francês, inglês, japonês, esperanto, etc.

Chico Xavier sempre considerou toda a sua obra como fruto de um processo mediúnico. Segundo ele, o seu papel teria sido de um instrumento mediador, responsável pela transmissão de mensagens na comunicação estabelecida entre o plano material e o plano espiritual 4. A lista de nomes dos assinantes dessas mensagens deixadas por ele compõe-se tanto de personalidades consagradas no meio literário e na história, como de pessoas comuns, as quais, depois de mortas, viriam pelo processo psicográfico divulgar "notícias do além", enfatizando a existência de "vida após a morte".

Do período que compreende os 70 anos de produção desses textos escritos pelo médium Chico Xavier - de 1932 a 2002 -, constata-se a existência do que se poderia considerar uma outra literatura, paralela à oficial, a se manter com sucesso no mercado editorial brasileiro, mediante um público cada vez maior e diversificado -- dos segmentos mais populares a outros -, em que se pensaria a questão da "cultura das bordas", desenvolvida por Jerusa Pires Ferreira 5.

Há, por exemplo, quem tenha lido Castro Alves, Olavo Bilac, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza e, mesmo, o escritor francês Victor Hugo somente pelas obras psicográficas de Chico Xavier.

Sabe-se, também, de pessoas que consomem os livros desse espírita mineiro unicamente como objeto de fetiche. Compram suas obras, mas não as lêem, adquirem os exemplares com o fim de conservá-los em algum lugar da casa para proporcionar boas vibrações ao ambiente.

No dia 30 de junho de 2002, data que marcou o falecimento de Chico Xavier e, igualmente, a vitória do Brasil na última Copa Mundial de futebol, muitos órgãos da grande imprensa no país registraram ambos acontecimentos. Lembraria, especialmente, a revista Isto É (10.7.2002), em cuja capa foi apresentada uma foto de um personagem (indefinido) em posição de psicografar. Bem à sua frente lia-se a manchete: "O país do espiritismo". E logo abaixo, era anunciado: "Com 2,34 milhões de adeptos, 15% dos espíritas do planeta, o Brasil chora a perda de Chico Xavier, o lendário médium que morreu aos 92 anos". Mais adiante, em letras menores, vinha escrito: "E também do futebol multidões recebem os heróis do penta". O editorial da mesma revista, assinado por Hélio Campos Mello (diretor de redação), intitulava-se "Alegria e tristeza", procurando tratar com a mesma importância em seu texto de abertura os dois grandes eventos da semana: a homenagem aos pentacampeões de futebol em Brasília e a mobilização de milhares de brasileiros por conta da morte do médium mineiro Chico Xavier.

* * *

Este artigo, "Sonhos de Chico Xavier, procura trabalhar uma parte da biografia desse personagem, em que se divulga sua primeira experiência espírita, em 1915, quando tinha apenas cinco anos de idade. Trata-se de uma passagem na história de vida de Chico baseada em depoimentos seus e, em seguida, apresentada com grande ênfase nas mais diversas versões a seu respeito - com autorias mencionadas ou não - em prosa, em cordel, na forma de histórias em quadrinhos, etc. Tais publicações são feitas tanto por editoras espíritas como também por editoras não vinculadas à doutrina, em particular.

Conta-se que sua mãe - dona Maria João -, momentos antes de falecer, chamou o filho para lhe dizer que não morreria. Mesmo que outras pessoas lhe dissessem o contrário, ele devia acreditar nela.

Nas estrofes seguintes - tiradas de um folheto de literatura de cordel intitulado: A verdadeira história de Chico Xavier, autoria do poeta Enéias Tavares dos Santos, lançado pela editora Luzeiro de São Paulo (s.d.) - reproduzimos esse trecho da versão desse poeta popular.

(...) Chico, ao fazer cinco anos,
Triste drama lhe surgia:
Sua mãe, adoecendo,
Viu que não escaparia
E ele, apegado a ela,
Constantemente sofria.
(...) - É mamãe! E o que é
Que está para acontecer?
- Nada de mais, meu querido!
Não pense que eu vou morrer,
Pois eu não vou te deixar
Só, neste mundo a sofrer!
Eu vou é dormir um sono,
Você não se precipite!
Muita gente vem me olhar,
Fique calmo e não se agite -
Todos dirão que eu morri,
Mas você não acredite!

Passado algum tempo, depois de anunciada a morte de dona Maria João, o menino Chico Xavier foi morar com sua madrinha. E, como relatam os biógrafos, Chico, que era constantemente vítima dos maltratos dessa madrinha, um dia correu para o fundo do quintal da casa onde morava para chorar e rezar por causa de seus sofrimentos quando... de repente se deparou com a imagem da mãe - dona Maria João - a lhe dar conselhos embaixo de uma bananeira. A partir daí, ele passou a se comunicar com ela.

Reproduzo abaixo a seqüência dessa parte, agora retirada de uma outra versão biográfica, igualmente, muito interessante, não mais apresentada em versos. Trata-se de um capítulo denominado "Perfil biográfico - uma vida com amor", de Ubiratan Machado, do livro: Chico Xavier por ele mesmo. São Paulo, Editora Martin Claret, 1994, p. 29.

ISTO É


(...) Um dia, angustiado e com o corpo marcado de vergões, Chico correu para o fundo do quintal. Ia refugiar-se à sombra amiga de velhas bananeiras. Ali, começou a rezar.

Pouco depois, viu dona Maria João a seu lado. Lembrou-se das palavras da mãe, de que não ia morrer. E, com lógica de seus cinco anos, não se surpreendeu. "Quero ir embora daqui, mamãe. Só vivo apanhando...". A mãe recomendou-lhe paciência: "Quem não sofre não aprende a lutar". "Minha madrinha diz que estou com o diabo no corpo...". "Não se importe. Tudo passa e, se você tiver paciência, Jesus nos ajudará para ficarmos sempre juntos."

Gostaria de analisar esse episódio como uma espécie de sonho do personagem vivido, de uma certa forma, em estado de vigília, a nos apontar, de início, dois elementos de fundamental importância em sua história de vida com relação ao tema da morte. O primeiro deles, a interdição provocada pelo falecimento de sua mãe; o segundo, a recompensa proporcionada por seu retorno. Ambos elementos estariam inseridos num processo contíguo de comunicação entre o mundo real/mãe ausente e o mundo ideal/mãe presente através do filho.

No caso dessa história, o que se observa é uma idealização representada tanto na forma visual - pela imagem ("espírito da mãe") - como na forma sonora - pela escuta ("voz do espírito da mãe"), efetivando-se numa comunicação "possível" com base na afirmação primeira da mãe ao seu filho momentos antes de morrer (vale lembrar que, na história do personagem Chico, essa passagem do encontro com sua mãe foi encarada pelo pai como sinal de loucura do menino, e, também, como "coisa do diabo", pela madrinha. Somente depois de adulto e ligado ao espiritismo é que Chico passa a ser reconhecido, aí nessa passagem, como um médium em exercício desde sua infância).

Esse episódio, que a princípio poderia ser visto como algo bem particular, ao mesmo tempo, revela-se como uma grande referência do que se transformaria, mais tarde, em fenômeno Chico Xavier. Isto é, o que era sonho de Chico Xavier teria se desdobrado em outros sonhos, seus e de outras pessoas; sonhos manifestados, por sua vez, em produção e demanda de mensagens, livros psicográficos e outras obras espíritas em realização.

Primeiramente, esses sonhos comportariam os mesmos elementos em relação ao tema da morte: interdição e recompensa, num processo contíguo de comunicação entre mundos reais e ideais, com sujeitos ausentes/presentes (através de), representados em forma visual, sonora, escrita, etc. Em segundo lugar, esses sonhos estariam apoiados no ideário kardecista, impregnados, ao mesmo tempo, pela técnica e pelos procedimentos desenvolvidos durante todos esses anos na sociedade brasileira por Chico Xavier, especialmente: de um lado, ele mesmo se servindo como mediador de mensagens; de outro, atuando na condição de modelo de mediações.

Do conjunto de títulos que forma a sua obra, em geral, o que se observa é a existência de um texto complementado por outro, o das assinaturas de entidades comunicantes. Ambos - títulos e assinaturas - promovendo, na composição de repertórios e elencos, fundições e religamentos temporais e de espacialidade, a garantir com certa eficácia materializações de sujeitos e lugares de papel e no papel.

A matéria de elaboração impressa, no âmbito da edição de livros populares, é fenômeno de cultura e memória é, também, um tipo de criação a ser ainda explorado em sua riqueza e complexidade. Nesse sentido, sonhos de Chico Xavier, a meu ver, são signos formatados em comunicações espíritas, discursos expressando-se em múltiplos "eus" e "outros", num "gênero" que se poderia denominar o da psicografia.

http://chicoxavier.multiply.com/